Apesar de carregar essa “falha no currículo” (que espero sanar em breve) de nunca ter lido nenhuma das obras de Teilhard de Chardin para conhecer seu pensamento, sei o que alguns amigos acham dele. E, a julgar por essas referências próximas, é uma figura bastante polarizadora: há quem goste muito de seu trabalho e o considere autor de conceitos revolucionários que ajudam a buscar uma síntese entre ciência e fé, e há quem o rejeite veementemente como herege panenteísta, racista e eugenista. Um amigo que faz parte do grupo dos entusiastas, o padre argentino Lucio Florio, da Fundação Diálogo entre Ciência e Religião (Decyr), me chamou a atenção recentemente para uma efeméride relacionada a Teilhard de Chardin.
Neste ano comemora-se o centenário da Missa Sobre o Mundo, um texto que o padre-paleontólogo escreveu em agosto de 1923 na festa litúrgica da Transfiguração do Senhor, que era muito cara a Teilhard de Chardin. Na ocasião ele estava no remoto Deserto de Ordos, na região chinesa da Mongólia Interior, e não tinha nem pão nem vinho consigo; sem poder celebrar a missa, em vez disso compôs a Missa Sobre o Mundo. Belo, sem dúvida; muito místico em certos trechos; em alguns momentos bastante eucarístico, em outros com conceitos aparentemente estranhos do ponto de vista da ortodoxia católica (“o Universo, imensa Hóstia, fez-se Carne”?!), até meio panteísta; há partes que parecem remeter ao “Ponto Ômega” e ao “Cristo Cósmico” que são essenciais ao pensamento de Chardin. Ainda precisarei relê-la um bocado de vezes.
Há quem goste muito de Teilhard de Chardin e o considere autor de conceitos revolucionários que ajudam a buscar uma síntese entre ciência e fé, e há quem o rejeite veementemente como herege panenteísta, racista e eugenista
Na conferência que fez recentemente em um congresso acadêmico sobre o centenário da Missa Sobre o Mundo, o padre Florio fala de uma “nostalgia eucarística” que “manifesta este chamado interior para direcionar a pesquisa e a espiritualidade na direção do Cristo histórico e escatológico. As últimas entradas em seu diário dão testemunho disso: ‘eu vou na direção daquele que está vindo’”. E, escrevendo em 2016 sobre Teilhard de Chardin, Eucaristia e cosmos, o padre Antonio Spadaro, então diretor-geral da revista La Civiltà Cattolica, mostra como a Missa Sobre o Mundo foi parar, de certa forma, nos documentos pontifícios:
“As reflexões teilhardianas se fazem presentes de forma implícita quando Francisco escreve sobre a Eucaristia: ‘No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico’ (Laudato Si’, 236). E aqui Francisco cita João Paulo II, que expressou o mesmo pensamento teilhardiano na sua encíclica Ecclesia de Eucharistia: ‘Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar de uma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo’ (Ecclesia de Eucharistia, 8, citado em Laudato Si’, 236; destaque do papa João Paulo II). Aqui João Paulo II citava o célebre texto de Teilhard Missa Sobre o Mundo, escrito no Deserto de Ordos, na China.”
Enfim, não terei como fugir de Teilhard de Chardin por muito mais tempo, já que é alguém que se esforçou tremendamente na busca de uma síntese entre ciência e fé – se está equivocada ou não, só há um jeito de descobrir, que é lendo, nem que seja para criticar depois.
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Temos atrás falei de iniciativas interessantes na América Latina para promover autores locais, como as coleções de livros da Universidade Austral e da Universidade Católica de Salta, e a revista on-line Quaerentibus, que publica artigos em todas as línguas latinas. Mas aqui também temos o Radar ABC2, da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, que está à procura de talentos brasileiros em três áreas: estudos de livros, ensaios acadêmicos e livros. Neste mês de novembro foi aberta a segunda chamada para livros, e os interessados têm até janeiro do ano que vem para enviar suas propostas, de acordo com as instruções da chamada – é preciso, por exemplo, que o material seja inédito, e o candidato tem de incluir um capítulo de amostra. O material será examinado por um comitê selecionador, e os vencedores em cada categoria ão um contrato e receberão R$ 44 mil, pagos à medida que o projeto for sendo entregue pelo autor.
... sei que A razão diante do enigma da existência, o livro que reúne dezenas de entrevistas publicadas pelo Tubo de Ensaio nesses 15 anos, não entrou em nenhuma promoção de Black Friday, mas não é por isso que você vai deixar de adquirir, certo?