, é “uma disposição habitual e firme para fazer o bem. (...) São atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência e da vontade que regulam nossos atos”. Ora, a virtude é uma força constante, adquirida e já solidificada; é uma prática já arraigada de escolher o bem de cada situação. Então a definição de “hábito bom” vale, de fato; mas se tivermos em conta que se trata de um hábito estável conquistado com esforço, e estabelecido, como uma estaca, no fundo da nossa alma (se nos servimos, outra vez, da comparação entre a estruturação de nossa personalidade e a construção de edifícios, as virtudes entrariam como essas estacas, dando equilíbrio e firmeza a quaisquer andares superiores). Esse hábito, para ser considerado uma virtude adquirida, precisa ter se tornado, como diziam os antigos, uma “segunda natureza” em nós. A tal ponto que essa força, como um software instalado, ou um novo mindset, como está na moda dizer, a a regular os nossos atos, e vai ordenar as nossas paixões, como numa orquestra: nenhum dos sons e dos instrumentos é desprezado, ou é sempre silenciado; todos eles são integrados e organizados numa harmonia, de modo a construir, a edificar algo belo e afável. Essas forças vão nos permitir praticar o bem livremente.

Agora, como cada uma das incontáveis situações dramáticas da vida humana apresenta suas dificuldades próprias, e cada uma delas exige o desenvolvimento de uma virtude especial, são muitas, por certo, as forças que precisamos adquirir, assim como são muitos os músculos a trabalhar na academia, e apenas todos em conjunto podem compor, enfim, um corpo verdadeiramente forte. Porém, para dar o primeiro o, no primeiro dia de treino, por qual virtude devemos começar? Qual dessas forças nós devemos pensar em adquirir primeiro? Qual é a estaca que devemos fincar primeiro, para dar sequência a essa obra de edificação de nós mesmos, ou por que exercícios devemos começar, de modo a galgar avanços consistentes? Para responder a essa pergunta com precisão, é necessário fazer uma boa investigação, um trabalho de voltar-se sobre si próprio para se observar. Há que examinar-se e, idealmente, ter o auxílio de um diretor espiritual qualificado. Isso para que identifique, em você, muito especificamente, seus principais pontos fortes e pontos fracos, e comece a buscar a virtude correspondente ao seu defeito dominante.

VEJA TAMBÉM:

Mas, antes mesmo de enveredar por esse trabalho, existe o esquema, a estrutura comum do caminho a trilhar, coerente com a estrutura da natureza humana, que é a mesma para todos. O esquema tradicional remonta pelo menos a Platão, atravessou os séculos e traz quatro virtudes humanas principais; principais por serem as mais gerais, e abarcarem as virtudes menores: são como as “cabeças de chave” do esquema das virtudes, ou como as dobradiças de todas as outras – e por causa disso foram chamadas de “cardeais” ou “cardinais”, de cardo, cardinis, que é “dobradiça” em latim. São elas, na ordem, a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. Muito resumidamente, a prudência é a força habitual de discernir o bem de cada situação, e por isso ela é a primeira, pois é a guia das demais virtudes; a justiça é o hábito adquirido de dar a cada um o que lhe é de direito; a fortaleza é a força de perseverar nas dificuldades e de superar os obstáculos; e a temperança, enfim, é a virtude que modera a atração pelos prazeres e busca o equilíbrio no usufruto dos bens.

Então muito bem: se nós queremos começar do início, começar do zero, o melhor mesmo é começarmos de baixo para cima, do mais fácil e mais simples. A busca pela temperança deve ser o nosso ponto de partida. É, sem dúvida, a virtude mais modesta, aparentemente simplória ao olhar desatento. E justamente por isso é que devemos começar por aí. É muito difícil conquistar humildade e paciência, por exemplo, se antes não se fortaleceu na temperança, como quem prepara um grupo de músculos para apenas ser capaz de começar a trabalhar outro, uma vez que o corpo é um todo integrado, e a alma igualmente.

“Temperança” vem do latim tempero, temperare, que é mesmo o que parece ao nosso ouvido português: temperar, isto é, assim como na culinária, encontrar a justa medida, a quantidade exata, a combinação perfeita, a mistura certa; regular, controlar, moderar. O seu sentido mais imediato, quando dizemos que alguém é “temperante” ou “moderado”, é que não abusa dos alimentos, das bebidas e dos prazeres, que não exagera na bebida alcoólica ou não se perde no uso de outros entorpecentes. E, de fato, a prática de treinamento para a aquisição dessa virtude não pode ser feita a não ser nessas circunstâncias, que se oferecem a nós dia a dia. E, embora essas atitudes de privação e regulação pareçam ter a ver inteiramente com elementos que estão fora de nós, que nos são externos, como a comida e a bebida, a sua base está, desde o princípio, dentro de nós. Pois, a cada vez que fazemos um mínimo, um imperceptível esforço por negarmos a nós mesmos um único brigadeiro, por darmos uma única dentada a menos, estamos favorecendo aquele nosso eu superior sobre o nosso eu inferior, e o que é quase nada externamente pode acumular um tesouro invisível. Não porque haja qualquer mal no nosso corpo, ou nas suas carências, desejos e paixões sensuais; não, porque a dimensão corporal segue, em si mesma, a sua própria harmonia, como se fosse uma força cega da natureza.

Pela temperança nós verdadeiramente nos possuímos, tornamo-nos senhores, e não escravos de nós mesmos. É uma virtude de ordenação muito básica, de decidir quem manda: meu estômago ou eu

O corpo busca o bem do corpo, e ele é, como dizia São Francisco, o “irmão burro”. Mas ocorre que é para o nosso eu inferior, em primeiro lugar, que o corpo reclama e apresenta essas suas carências e desejos; e, quando nós subjugamos nosso eu inferior ao superior, quando nós comandamos, com a força de nossa vontade iluminada pela inteligência, a moderação, o tempero desses impulsos, nós em nada humilhamos ou diminuímos nosso corpo; ao contrário, nós o valorizamos seriamente, pois com essa virtude nós fazemos com que ele ocupe o justo lugar que lhe pertence no nosso ser de pessoa humana. Assim nós verdadeiramente nos possuímos, tornamo-nos senhores de nós mesmos – os patamares superiores senhoreando os inferiores –, e não escravos de nós mesmos, com os patamares superiores escravizados pelos inferiores. É uma virtude de ordenação muito básica, de decidir quem manda: meu estômago ou eu. E, se o nosso grande objetivo – objetivo na família, objetivo de vida, caminho para a felicidade verdadeira e perpétua – é nos doarmos, é preciso lembrar a frase de Jacques Copeau: “Doar-se é tudo. E para doar-se, é preciso antes possuir-se”.

E como se adquire a temperança? É preciso ar meses inteiros privando-se dos alimentos de que gostamos, tornarmo-nos abstêmios perpétuos, jejuar a pão e água dias a fio? Acredito que isso, assim, sem mais nem menos, seria apenas uma bravata e uma esquisitice, e não ajudaria em nada a adquirir, como já repetimos o suficiente, um hábito firme. Portanto é preciso dar pequenos os, mas firmes. Começa-se, na academia, com uma carga leve, que em poucas repetições já fadiga o músculo flácido, e o mesmo se dá com a força da vontade, e com o temperar dos nossos desejos de prazer e conforto. É capaz de sair da mesa um pouquinho aquém da saciedade completa? É capaz de não repetir o prato de que mais gostou? É capaz de inserir ou aumentar um pouco a porção do legume de que não gosta? E de pegar pouca sobremesa, ou pulá-la? E de pôr uma colher a menos de açúcar no café? Ficar sem carne um dia na semana? Depois aumente a carga, e aumente também as repetições, e assim, com constância, vai se adquirindo e firmando uma força, uma virtude capaz de, habitualmente, trocar um impulso do seu corpo por uma escolha sua, sua mesmo, do seu eu superior. A musculação é para valer, é um apuro ou uma luta real? Não, é um treino, como dizemos; mas é o treino que nos capacitará para a efetiva doação de nós mesmos, quando a hora chegar.

E uma palavra, apenas, sobre as crianças: Se queremos educar moralmente os nossos filhos, para que sejam pessoas de caráter, como vamos fazer com que adquiram essas virtudes? E esta, em específico? Nossos pequenos, os coitadinhos, para quem os sentidos e os afetos são tão importantes, devem ser privados dos prazeres, contrariados? Que terror! É preciso, aqui, fazer uma importantíssima distinção: somente um adulto pode perseguir, praticar e assimilar uma virtude, porque essa é uma ação que ocorre no plano das faculdades espirituais, da inteligência e da vontade, as quais, na criança, são ainda incipientes, e não operam plenamente. O que os pais podem, e devem, transmitir à criança é a prática constante, é um bom hábito, que não será mais que hábito.

VEJA TAMBÉM:

Como ensino em meus cursos, os quatro hábitos fundamentais na formação da criança são o sono, a alimentação, a higiene e a ordem. Esses quatro hábitos são os sulcos iniciais da formação moral; é o seu estabelecimento que dará à criança a possibilidade de firmá-los como virtudes, quando ela transitar, na adolescência, da infância para a vida adulta e tomar posse de suas faculdades espirituais e, em suma, de si mesma. É nessa turbulenta fase de transição que o nosso filho vai pôr à prova os hábitos que tiver vivido na infância: ele vai, é claro, questioná-los, e negá-los para testar sua consistência, para sentir o seu valor. Se quiser, ele poderá assumi-los em primeira pessoa, poderá optar por confirmar o que nós lhe demos quando ele ainda não podia optar – assim como a fé, no batismo que damos aos nossos bebês, os quais, quando chegarem às portas da juventude, poderão confirmá-la. Assim se transmutam os hábitos em virtudes. Sem esse gesto, eles apenas continuariam a executar bons costumes de maneira morna, como falamos no início.

O que podemos fazer às crianças pequenas, para dar-lhes como que uma semente de temperança, é insistir em ofertar todos os tipos de alimentos, insistir em que comam ao menos um grão, ao menos uma bocada daquilo de que não gostam, porque não se come apenas o que se gosta; come-se de tudo, e a saúde, por exemplo, vale mais que o prazer do sabor. Devemos também, certamente, afastar deles as tentações, e não exigir que fujam por si mesmos, com a força de vontade que ainda não opera neles, das guloseimas e das desordenadas extravagâncias que praticarmos na frente deles. Contudo, se não tivermos fornecido a eles a solidez desses hábitos estabelecidos, o que terão para negar e testar na adolescência? Se quiserem firmar uma virtude, terão de começar tudo sozinhos, do zero, a essa altura? Por isso repito, também incansavelmente, que a formação moral é a principal educação, porque trata-se, de certo modo, de educar a criança para que o adulto possa continuar educando-se a si próprio.

Não é impossível que este seja o seu caso, como é o de muita gente. Não recebemos dos nossos pais esses hábitos com suficiente firmeza, com solidez satisfatória, para que os pudéssemos apenas endossar e revivificar como virtudes, e assim progredir. Ou então, tragédia!, pode ser que, arrastados por ideias tortas, por maus conselheiros ou falta de orientação, tenhamos jogado fora na adolescência a nossa educação da infância. Ou um pouco mais tarde: pode ser que tenhamos, aos poucos, afrouxado, e, sem o devido cuidado de regar e podar, feito da nossa alma um jardim abandonado. E quantas vezes os pais não se põem à caça de um método para que suas crianças obedeçam, de qual seja a punição mais adequada, ou de como fazer o filho seguir determinadas diretrizes, sem perceber a grande contradição, e a impossibilidade de a criança fazer o que não conhece, e nunca viu. A virtude correspondente àquele hábito que ela precisa adquirir está completamente ausente do lar, e é o filho quem ganha a aparência de malcriado, ou de desobediente. Não precisamos ser perfeitos antes de ensinar o bem aos nossos filhos, não; na verdade, os encargos que vêm com os filhos são chamados e oportunidades para que aumentemos nossas forças e alarguemos nosso coração. Então comecemos pelo básico, e eduquemos as crianças, todas elas: que não só os nossos filhinhos, mas os nossos próprios corpos mimados, comecem a comer de tudo um pouco.