
Fonte: - PORTUGAL, Fillipe dos Santos. A institucionalização da vacina antivariólica no Império Lusobrasileiro nas primeiras décadas do Século XIX. Rio de Janeiro: s.n., 2018. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, 2018. (Foto: ??)
Naquela época, vacina não é o mesmo de hoje. Esqueça laboratório. A varíola é um vírus que causa uma doença parecida com a gripe, que depois evolui para enjôo, vômito, diarreia e, na fase terminal, tumores com pus por todo o corpo. Num mundo sem antibiótico, vários reis europeus tombaram e praticamente todos os reis das civilizações da América. Um médico da zona rural da Inglaterra percebeu que as mulheres ordenhadoras de vacas pareciam ser imunes à doença que matava milhares ao ano. As vacas também tinham as pústulas da varíola. Edward Jenner teve uma ideia: tirar o líquido das feridas das vacas infectadas e inocular em pessoas. Funcionou para prevenção e cura, virou a vacina. Era outro mundo.
A vacina obrigatória de 1904 era literalmente isso: o líquido retirado das pústulas de vacas infectadas com varíola e diretamente injetado em pessoas. Não vinha em vidrinho, caixinha, controle de qualidade, teste, nada disso. Era um prato cheio para medo e boatos. O mais famoso era de que os vacinados desenvolviam, com o tempo, feições bovinas.
Na Inglaterra, houve ligas contra a vacinação e contra a vacinação obrigatória. Mas, como o ambiente político na era bom - 1853 marcou o fim das 3 guerras do país contra Myanmar -, a maioria se vacinou, uma minoria pagou a multa para não vacinados e a vida seguiu. No Brasil, com ambiente político inflamado, colocar vacina e obrigatoriedade na mesma frase tinha um potencial demolidor. O senador Lauro Sodré decidiu reorganizar a oposição em torno do medo da vacina, impulsionado pelo ambiente político já contaminado com a reurbanização do Rio de Janeiro. Conseguiu.
Foi com uma reunião noturna e recheada de discursos políticos inflamados no Centro da Classe Operária que o senador Lauro Sodré fundou a Liga contra a Vacinação Obrigatória. Outros discursos incendiários seguiram a fala dele, todos falando muito de política e nada de vacina ou doença. Foi com base nas razões políticas para se opor à obrigatoriedade que a população foi instruída a reagir às vacinas que, na época, eram aplicadas de casa em casa, como ainda se faz em diversos países da África e da Ásia.
Claro que políticos e jornalistas da Liga contra a Vacinação Obrigatória não estavam preocupados com "liberdade individual" de pobre, como quiseram fazer parecer. Era uma manobra política para tentar derrubar o presidente ou ganhar poder. Como ainda é possível contar a mesma história mais de 100 anos depois? Porque enquanto houver otário, malandro não morre de fome, diz a lenda do Rio de Janeiro.
O movimento surgiu à esquerda do governo, reunindo operariado e estudantes, que foram às ruas. Houve quebra-quebra e bondes virados, caos total no Rio de Janeiro e em São Paulo. Foi a senha para que os generais aderissem ao movimento, que chegou ao ponto de recomendar ao presidente Rodrigues Alves, em 14 de novembro de 1904, que embarcasse num navio de guerra para garantir a própria segurança. Ele não quis. Começou então a revolta dos alunos das escolas militares, que se transformou em uma carnificina. No dia 16 de novembro, foi decretado Estado de Sítio e revogada a vacinação obrigatória.
O presidente seguinte não foi da ala revoltosa, foi Hermes da Fonseca, militar que não aderiu ao movimento e ajudou a sufocar a revolta dos alunos militares. Foi indicado ao governo em 1908, coincidentemente quando o Brasil teve um surto ainda pior de varíola. Dessa vez, a população pediu pela vacina e ninguém teve a brilhante ideia de debater obrigatoriedade, uma hipótese científica ainda não existente na vida real, usando argumentos políticos e da área do Direito.
As décadas am, o mundo a por uma revolução tecnológica, temos telefone, luz elétrica, geladeira, celulares, internet. Num desses momentos de nostalgia retrô, alguém desenterrou essa moda de debater uma hipótese científica que não existe na vida real utilizando argumentos da política e do direito. Por quê? Não sei, eu trabalho e pago boletos, vivo em outro universo.
Aliás, minha especialização é justamente nesta área: comunicação pública para mudança de comportamento. Foi o tronco de comunicação pública, advocacy e publicidade do UNICEF que eu ajudei a chefiar na campanha que erradicou a pólio em Angola e mirava apenas nos mais resistentes à vacina. Nem lá, que era, na época, a ditadura mais longeva do continente africano, as autoridades públicas ou comunicadores falavam a palavra obrigatoriedade - seja contra ou a favor. Ali, muito rápido as consequências dessa irresponsabilidade explodem na cara de quem a comete. No Brasil não, é possível viver eternamente na bolha da militância do universo simbólico, à esquerda e à direita.
Como o Poder Público, mesmo numa ditadura, decide se uma vacina é obrigatória? Premissa científica e custo-efetividade da política pública. A premissa científica seria a de uma vacina que só funciona se 100% da população a receberem, o que não existe no mundo real. Já que não há necessidade científica de obrigar, partimos para a política pública.
Qual é o custo da efetividade de uma política de vacinação caso se opte por obrigar? E caso se opte por incentivar? Obrigar é incendiário e inútil em tempos de instabilidade política, além de ser caro - senão impossível - sob o ponto de vista logístico. Incentivar tem dado certo para atingir o percentual mínimo de imunizados há mais de um século, mesmo em casos de fortes campanhas contra uma vacina específica. A do HPV, combatida tanto por ONGs feministas quanto por fundamentalistas religiosos, teve ampla aderência da população e estamos acima dos níveis internacionais de imunização.
A última pessoa pública que pensava em saúde quando abriu debate sobre obrigatoriedade de vacina no Brasil se chamava Oswaldo Cruz e morreu faz mais de 100 anos. Depois dele, todas os debates inflamados sobre obrigatoriedade de vacina não têm nada a ver com saúde, têm a ver com política. Você vai colaborar?
A tendência nos próximos dias é que todo político ou influencer, com ou sem mandato, tenha uma "opinião" sobre vacina obrigatória. Coloco entre aspas porque opinião pressupõe ampla informação sobre o tema, preparo técnico e, para os exigentes, no mínimo uma experiência prática de sucesso na área. O que os políticos têm vocalizado pode se chamar de narrativa, imaginação ou sentimento, mas não é opinião. E por que farão isso? Porque vivemos a economia da atenção, eles vão mobilizar nas redes sociais, ganharão espaço na imprensa. Os mais sortudos vão arrumar um rival e essa briga vai render pano para manga até que ganhem em publicidade espontânea mais do que pensaram em poder pagar um dia. Estamos em campanha eleitoral.
E se esse debate ególatra e esquizofrênico para estimular o medo nas pessoas acabar tendo consequências ruins para o cidadão? Quem se importa? Alguém vai cobrar a responsabilidade de quem brincou com algo tão sério porque queria aparecer? Claro que não.
Se os políticos dormem bem fazendo isso, está na hora de nós, jornalistas, colocarmos a mão na consciência. Podemos fazer muito melhor do que estamos fazendo num tema que é tão sério para todas as famílias. Está na hora de colocar um ponto final na espetacularização da cobertura sobre vacina. Não há razão para dar espaço a políticos que não têm poder de decisão para militar de forma inflamada sobre decisões que são técnicas e não foram tomadas. Eles que arrumem outro jeito de polemizar, não a saúde física e mental das pessoas.
Há muitos anos chamo o jornalismo declaratório de "shownalismo", o que me rendeu muita cara virada entre colegas. Precisamos, conjuntamente, decidir que um tweet desta ou daquela pessoa, sem confirmação de documentos ou decisões, não é reportagem que se faça sobre vacina. Devemos isso ao público. Já atingimos o limite de organizar "debates" ou "reportagens" em que um lado fala que está chovendo e outro fala que não está. Nós, jornalistas, precisamos abrir a janela em busca da verdade.