Não que eu negue a preocupação declarada dos cientistas políticos: uma esquerda sem vontade de subverter não será capaz de defender a democracia plena, combater desigualdades sociais e de enfrentar a mudança climática, se está apenas ocupada em manter a ordem. Mas, como disse outro dia, não acredito em uma palavra desse discurso.

A razão por que a esquerda luta para defender o sistema contra a direita subversiva não é que a pobre-coitada foi enganada pelos deuses, mas porque ela é... a elite. Ricci ao menos ite isso abertamente: a hegemonia cultural já pertencia à esquerda havia muito tempo. Ora, que grupo detém a hegemonia na universidade, no jornalismo, na produção cultural, no Judiciário e no Executivo? Que grupo é capaz de colocar a seu serviço os maiores grupos empresariais e fundações filantrópicas atuando no país, se não a elite?

Não há nenhum “paradoxo da ordem”. A esquerda não foi “empurrada” pelo maldoso bolsonarismo para o ingrato trabalho de preservar as instituições. O conflito entre a esquerda “ordeira” e a direita “subversiva”, que à superfície se mostra horizontal, é no fundo um conflito vertical: o conflito entre uma elite cosmopolita, com valores esquerdistas e hábitos patrimonialistas, e um proletariado cultural conservador, mas plural em suas visões sobre Estado e economia. Esse proletariado envolve a classe C, a classe média e uma maioria evangélica. Eles têm, sim, o apoio de uma pequena elite conservadora de maioria católica, mas essa última há muito tempo perdeu seu poder de dobrar os rumos nacionais.

A esquerda não dispõe mais de seus antigos oleodutos de “revolta” porque quem está revoltado é o povo, e a esquerda deixou de ser povo há muito tempo

A elite cosmopolita defende a democracia? Sim, contra o risco do populismo de direita, e não tenho por que negar isso. Mas Trump e Bolsonaro não são causas, e sim efeitos. Desde 2013 a elite sabe que perdeu o contato com as massas, e que a sua versão de “democracia” não funciona. O modelo fracassa em muitos níveis, desde o abuso do Judiciário para impor sua subversão moral (e não apenas para promover direitos humanos, como insiste em alegar) à falha em lidar com problemas sociais urgentes como segurança pública e emprego. A decisão da elite de ressuscitar Lula, a “kriptonita” de Bolsonaro, destruindo o sistema de defesa contra a corrupção diante dos olhos de todos, debilitou ainda mais a confiança na sua “democracia”.

O que me deixa realmente perplexo é a incapacidade de nossos jornalistas e intelectuais de reconhecer esse óbvio que vem se repetindo em diversas democracias atuais: uma elite cosmopolita e “tecnoburocrática” (como diz Michael Lind) faz tudo o que pode para neutralizar a voz e o voto das massas, e luta para manter a sua “ordem”. É por isso, meus amigos, que a esquerda não dispõe mais de seus antigos oleodutos de “revolta”. Quem está revoltado é o povo, e a esquerda deixou de ser povo há muito tempo.

Uma saída possível seria a elite nacional ceder e dividir o poder com o proletariado cultural; desistir de usar o STF para forçar suas agendas e “empurrar o país na direção certa”; abandonar a “síntese identitarista”; e itir um Brasil plural. Seria um o pequeno, mas salutar. Outra alternativa seria a ascensão de uma nova elite, capaz de alcançar um acordo nacional.

Para a esquerda atual, a esquerda que é o establishment, parece haver apenas um futuro issível: manter sua capacidade de iludir as massas, controlando a produção e disseminação do conhecimento, dissimular seus atos de manipulação do sistema, e culpar os conservadores por sua guerra cultural vertical.