Nota-se que, de acordo com essa linhagem política, a educação não é vista como um bem transmitido às crianças de geração em geração, mas como meio de criação do homem novo. Foi o que itiu ninguém menos que Che Guevara, que, em Socialismo e o Homem em Cuba, disse-o com todas as letras: “Na nossa sociedade, jogam um grande papel a juventude e o partido. A primeira é particularmente importante por ser a matéria maleável com a qual se pode construir o homem novo sem nenhuma das taras anteriores”.
Como explica o historiador Orlando Figes em Sussurros: A Vida Privada na Rússia de Stalin: “A família era o primeiro campo de batalha dos bolcheviques. Nos anos 1920, eles tinham por artigo de fé que a ‘família burguesa’ era socialmente danosa: autocentrada e conservadora, era vista como um reduto de religião, superstição, ignorância e preconceito; estimularia o egoísmo e o consumismo, oprimindo mulheres e crianças. Os bolcheviques esperavam que a família desaparecesse à medida que a Rússia soviética se tornasse um sistema socialista pleno, no qual o Estado assumiria a responsabilidade por todas as funções domésticas básicas, fornecendo berçários, lavanderias e refeitórios em centros públicos e conjuntos habitacionais. Liberadas do trabalho doméstico, as mulheres estariam livres para integrar a força de trabalho em pé de igualdade com os homens. O casamento patriarcal, com sua moral sexual submissa, deveria morrer e ser substituído – assim acreditavam os radicais – por ‘uniões de amor livre’... O ABC do Comunismo (1919) vislumbrava uma sociedade futura na qual os pais já não usariam o pronome ‘meu/minha’ para se referir aos filhos, que seriam criados de maneira comunitária”.
Refletindo sobre a crise educacional por ela já diagnosticada nos anos 1950, a filósofa Hannah Arendt pôs o dedo na ferida, destrinchando o processo pelo qual, desde o século 18, a educação veio sendo transformada em instrumento da política e, em especial, de projetos políticos totalitários. No ensaio “A Crise na Educação” (1957), publicado na revista americana Partisan Review, Arendt escreve: “O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, desde a Antiguidade até os nossos dias, mostra bem como pode parecer natural querer começar um mundo novo com aqueles que são novos por nascimento e por natureza. No que diz respeito à política há aqui, obviamente, uma grave incompreensão: em vez de um indivíduo se juntar aos seus semelhantes assumindo o esforço de os persuadir e correndo o risco de falhar, opta por uma intervenção ditatorial, baseada na superioridade do adulto, procurando produzir o novo como um fait accompli, quer dizer, como se o novo já existisse… É por essa razão que, na Europa, a crença de que é necessário começar pelas crianças se se pretendem produzir novas condições tem sido monopólio principalmente dos movimentos revolucionários com tendências tirânicas, movimentos esses que, quando chegam ao poder, retiram os filhos aos pais e, muito simplesmente, tratam de os endoutrinar”.
É significativo que o projeto do MEC venha sendo ignorado ou desdenhado pelos nossos bem-pensantes, com destaque para os jornalistas
No mesmo texto, Arendt denuncia especificamente a perversidade dessa educação antifamiliar, que retira das crianças aquilo de que mais têm necessidade para desenvolver plenamente as suas capacidades cognitivas, emocionais e intelectuais, assim convertendo-as em autômatos sem alma, meros replicadores de slogans e palavras de ordem. Nas palavras da filósofa: “Porque a criança tem necessidade de ser protegida do mundo, seu lugar é no seio da família. É para lá que os adultos regressam a cada dia do mundo exterior e se unem na segurança da vida privada, ao abrigo de quatro muros. Esses quatro muros, ao abrigo dos quais se desenrola a vida íntima familiar, constituem uma proteção contra o mundo e, em particular, contra o aspecto público do mundo. Delimitam um lugar seguro sem o qual nenhuma vida pode prosperar. Isso é válido não somente para a vida da criança, mas também para a vida em geral – por todo lado em que esta é constantemente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança privadas, a sua qualidade vital é destruída”.
É esse “abrigo de quatro muros” e essa “proteção da intimidade” que o programa Conta pra mim parece querer valorizar, partindo do correto diagnóstico de que foi justamente esse domínio privado e inviolável do lar o principal alvo do ataque das políticas educacionais progressistas das últimas décadas, em especial a do lulopetismo. Se esta última pretendeu usar a escola para “libertar” os alunos daquilo que Che Guevara definiu como “taras anteriores” – ou seja, a influência da família –, a atual política educacional parece seguir o caminho inverso, valorizando o papel da família na formação intelectual da criança, e preparando-a, assim, para uma bem-sucedida educação escolar e universitária. Antes, a criança era meio; agora, ela é fim. Uma mudança e tanto...
Resta significativo, por último, que o projeto venha sendo ignorado ou desdenhado pelos nossos bem-pensantes, com destaque para os jornalistas, ao mesmo tempo produtos e agentes dessa educação revolucionária estupidificante, que, aniquilando o seu discernimento natural e a sua imaginação moral, infundiu-lhes a patológica ambição de mudar o mundo sem, todavia, fornecer-lhes os instrumentos básicos para compreendê-lo minimamente.