A modernidade, assim, marca-se por esta ascensão do poder de mando, cada vez mais distante das pessoas a ele submissas. Um prefeito hoje arroga-se poderes que um governante qualquer de há poucas centenas de anos jamais sonharia em ter, um governador se percebe como um semideus, e um presidente da República pode até – como soem fazer os americanos – acordar de mau humor e mandar tacar mísseis na cabeça de um monte de gente inocente. O poder foi subindo, desprovendo os seus donos legítimos, de tal forma que hoje a superstição absurda segundo a qual as crianças pertencem ao Estado e este cede aos pais alguns direitos a por verdade, a por lei. O governo, ou, antes, a legiferação diarreica ou a ocorrer em um nível cada vez mais alto, cada vez mais distante das pessoas reais. Tão alto, que cada vez menos é possível percebê-la e cada vez menos é possível fazê-la valer.

Quando do início da modernidade, o que se fez, em primeiro lugar, foi uma vasta demolição no atacado de entidades de autogoverno e mesmo de culturas locais, tudo em prol duma vasta centralização geral. A Revolução sa, por exemplo, fez pela força desaparecerem de circulação centenas, ou talvez mesmo milhares, de línguas diferentes faladas pelos sete cantos do país, impondo uniformemente em seu lugar a língua de Paris, a que hoje chamamos “francês”. Algo mais ou menos semelhante aconteceu tardiamente no Brasil, com a despótica proibição pelo infame Getúlio Vargas dos dialetos alemães e italianos que então se falavam em muitas partes do país. Antes mesmo disso já houvera o fim da dita língua geral, inventada pelos jesuítas e que era a língua franca de São Paulo e parte de Minas Gerais (é a língua em que até hoje são denominados muitos bairros e cidades daquela vasta região: ibirapuera, butantã, m’boi mirim, caraguatatuba, pindamonhangaba, itamonte, itanhandu, caxambu, guaratinguetá, itagaçaba etc. são expressões da língua geral).

O poder “emana do povo” como o chulé emana do tênis: vem dele, mas não é ele nem tem ele poder sobre aquilo

A modernidade, assim, veio basicamente uniformizar a língua e, em grande escala, a cultura das vastas regiões que tinham o azar de “pertencer” a um único governante-semideus. A lei ou a vir de cima para baixo. As “nações” modernas – termo que se confunde mesmo com o de “Estado”, mais ainda na medida em que, havendo um Estado moderno, as demais nações existentes no mesmo território eram sempre massacradas até que sobrasse uma só coisa pasteurizada e homogênea – na verdade são criações artificiais, oriundas da aplicação maciça de força de cima para baixo em todos os campos: legal, cultural, religioso (foi o primeiro), político etc.

E o tal globalismo, o que seria? Nada mais simples: ele seria a aplicação disso em um estágio superior. Uma ultracentralização num ultraestado. Assim como o Estado “nacional” francês destruiu culturalmente as muitas nações occitanas, bretãs, d’oil, etc., o globalismo teria por objetivo fazer o mesmo com as “nações” que tivessem decorrido deste processo: a alemã, a sa, a espanhola etc. É neste sentido que a União Europeia, por exemplo, surgiu como zona de comércio comum e em pouquíssimo tempo se arrogou mais e mais poderes, chegando ao sublime do ridículo de querer determinar como deveriam ser fabricados os queijos típicos de cada região. Os revolucionários ses, das ardenas mais profundas do inferno, devem ter visto isso, dado um tapa na coxa e reclamado “como é que não pensamos nisso quando foi a nossa vez?!”...

Ou seja: o que os pseudonacionalismos modernos fizeram ao destruir culturalmente de modo quase completo as muitíssimas nações que existiam antes deles alcançarem o poder, o globalismo faria com as “nações” artificiais da modernidade. Seria o próximo o lógico da modernidade, que se caracteriza (ou caracterizava) pela ideia de jerico segundo a qual a universalidade da razão (ou seja, a opinião única, em última instância) seria algo mais “seguro” que a própria existência do próximo. “Não sei se você existe, mas você tem de pensar como eu” poderia ser o lema da modernidade. Daí a necessidade de pasteurização, de centralização de tudo, que só deveria acabar quando todos pensassem exatamente do mesmo modo, vestissem-se igual (isso aconteceu), falassem a mesma língua (talvez uma forma simplificada do inglês) etc.

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Beleza; até aí dá para entender, não é mesmo? Mas aconteceu um probleminha, uma pedra no meio do caminho da ascensão da modernidade a ultramodernidade. Este obstáculo é o fato de que a antinaturalidade da modernidade, ou seja, a sua incompatibilidade com o “hardware” mental do ser humano, impede que ela vá mais além. Ao contrário, até: ela começou já a se desmanchar, e muito rapidamente. Se o “generalíssimo” Francisco Franco sustentou pela força por décadas a ideia moderna de uma Espanha única, hoje os catalães já estão enfrentando a polícia e o Judiciário espanhóis para fazer renascer uma Catalunha em última instância pré-moderna. Na nave-mãe da modernidade tardia, os Estados Unidos, as diferenças culturais entre as costas e o vasto interior já estão levando muitos a aventar a possibilidade de guerras civis e secessões, tamanho é o fosso que se abriu entre as culturas seminacionais que perfazem os EUA. Em muitos outros lugares, as populações estão se levantando contra Estados demasiadamente centralizadores, de forma descoordenada, mas perfeitamente ilustrativa de um ethos, um zeitgeist, um kairós, um momento histórico.

Para que houvesse um globalismo ultramoderno, ou seja, um gigantesco Estado único em que a ONU fizesse as vezes de Moscou, Pequim, Washington, Paris e Brasília de uma vez só, seria necessário que houvesse Estados nacionais sobre cujos ombros pudesse se levantar o superestado, ou ultraestado. Moscou, Pequim, Washington, Paris e Brasília precisariam colocar suas tropas a serviço da ONU (ou do que quer que fosse desempenhar este papel de ultragoverno do ultraestado) para fazer valer as novas ultraleis por toda parte.

Mas não é mais este o momento histórico. Alcançamos o “peak centralization”, o ponto máximo da maré montante de centralização. Ela chocou-se com a barreira de pedra da natureza humana, que simplesmente não consegue lidar com instituições demasiadamente distantes da escala humana e familiar. Na exata medida em que os Estados nacionais modernos foram roubando poderes das famílias e das instituições de cooperação mútua intermediárias entre estas e o Estado, eles foram enrolando uma corda no próprio pescoço, aproximando-se cada vez mais do ponto que finalmente alcançaram, em que aos olhos da população como um todo eles pararam de fazer sentido.

Em muitos lugares, as populações estão se levantando contra Estados demasiadamente centralizadores

Os “coletes amarelos” ses não conseguem perceber sentido algum nas leis que emanam como chulé do tênis pútrido que se tornou o Estado francês. Os ingleses chegaram à conclusão de que Bruxelas enlouqueceu, e não duvido que em breve os escoceses tentem novamente livrar-se do tacão inglês. Os legiferadores simplesmente chegaram a um ponto em que estão longe demais, em que se tornou impossível distingui-los das ervinhas do Monte Olimpo onde julgam estar. Com isso, eles perderam o poder de fato, mesmo que ainda não o tenham percebido.

Os recrudescimentos nacionalistas húngaro e polaco nada mais são que um primeiro movimento de recuo; estes países, lembremo-nos, acabam de se ver livres da tentativa brutal de globalismo forçado que foi a União Soviética. Não se trata de uma ascensão nacionalista sobre elementos infranacionais (como no discurso que quer percebê-la como antissemita), sim de uma afirmação nacional sobre elementos supranacionais, ou antes ultranacionais. Há muito mais em comum entre a Catalunha e a Hungria, a Polônia e a Inglaterra do Brexit que entre qualquer uma destas e os nacionalismos do século ado, que eram simplesmente a fase final da centralização “nacional” que hoje começa a se desmanchar. Hitler juntou sua Áustria natal à vasta (e então novíssima) Alemanha, tentando criar uma nação germanófona única. Para isso, inclusive, ele começou anexando os Sudetos e rumando à Konigsberg de Kant. Já os nacionalistas alemães de hoje, como o AfD, estão tentando sair do monstro de Frankenstein em que a cabeça (ou antes o bolso) alemã foi costurada ao resto da Europa por Bruxelas, negando todos e cada um dos pertencimentos nacionais ou infranacionais em prol de uma ultranacionalidade, um ultraestado, uma ultracentralização que jamais virá a ocorrer plenamente.

Assim, é evidente que, sim, claro, o globalismo é péssimo e não merece apoio algum. Por outro lado, sua chance de efetivamente ocorrer, de ir mais longe que o que já foi, é simplesmente nula. Negativa, mesmo. O que se vê por aí, nas UE e ONU da vida, são simplesmente estertores da decomposição do cadáver insepulto da modernidade. Quando um cadáver arrota, ela não está demonstrando vida como um bebê que o faz, e sim provando sua putrefação, ao libertar os gases formados pela decomposição de suas entranhas. Não precisamos ter medo de cadáveres, sim de gente viva demais.

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