Difícil pensar numa cena tão dantesca. 6g3k6v
Essa foi a cereja do bolo. Ao longo do livro, aprendemos que processos internos, tais como “falta de urbanidade”, são mecanismos de intimidação, feitos anonimamente; que coletivos estudantis agem em perfeita sinergia com a istração; que são sempre dois pesos e duas medidas (por exemplo: os calouros de História foram recebidos com uma convocação para socar fascistas, mas a istração falou que era “só um meme”; um professor promoveu uma exposição de fotos com genitálias à mostra, e o mesmo conseguiu mudar o nome do projeto de extensão alegando que chamava as universitárias de prostitutas). A burocracia vetou a continuidade do projeto e, antes disso, impedira Gabriel Giannattasio de dar uma disciplina obrigatória, acolhendo as acusações dos coletivos.
O caso mais ilustrativo da corrupção moral do professorado talvez seja o da professora que mandou áudios por WhatsApp a uma aluna assim: “Você chegou ao limite de defender essas coisas que o Gabriel fala. O Gabriel está perdido, você não entendeu, menina? E você vai se foder [sic], porque ele não vai te levar a lugar nenhum, querida”. Isso é uma professora se dirigindo a uma aluna de graduação que começara a iniciação científica com ela e estava prestes a defender o trabalho de conclusão. A ameaça velada é a de sabotagem futura. Concursos para professor não é marcando x; seleção para pós-graduação não é impessoal. Numa área como História, muitos querem virar pesquisadores e acadêmicos. Vida acadêmica na universidade pública é uma eterna briga de facção competindo por recursos (já escrevi sobre isto aqui e aqui).
O próprio Gabriel Giannattasio virou um pária. Deixou de ser convidado para bancas e dificilmente algum programa de pós aprovaria o ingresso de um aluno seu. Estudar com ele torna-se a certeza de uma carreira acadêmica sabotada. Assim, na primeira vez em que o impediram de dar disciplina obrigatória, criaram duas turmas, de modo que quem não quisesse ser aluno dele tivesse a opção de fazer a matéria com um colega dele de esquerda. Qualquer aluno que escolhesse cursar a disciplina com ele estaria, naturalmente, cancelado, e sem perspectiva de ter uma carreira. O temor do cancelamento era também um desestímulo à participação no projeto de extensão.
Depois disso, deixaram-no só com disciplinas optativas. Os alunos não pegam as optativas por medo e Giannattasio está, na prática, mais ou menos como FHC durante o regime militar: precocemente aposentado das sala de aula por razões políticas.
O livro é organizado por Giannattasio, composto em sua maioria por textos dos envolvidos: ele próprio, alguns alunos, Paulo Briguet (o jornalista local que dava ciência dos fatos a Londrina e depois participou do projeto de extensão), participantes do projeto… No começo, há um pequeno texto do pesquisador Pedro Franco, que estuda o problema da intolerância nas universidades. Ele “não tem a pretensão de sugerir uma solução”, mas “um caminho para que essas soluções possam surgir de dentro da universidade.” Esse “caminho” seria o da Heterodox Academy, fundada por Jonathan Haidt nos EUA. Uma Academia Heterodoxa brasileira deveria formar uma rede de pesquisadores com três objetivos: “conscientizar a comunidade acadêmica […] sobre os desafios [leia-se: problemas] que a polarização ideológica e a falta de diversidade política no meio acadêmico oferecem para a educação superior”; “realizar pesquisas e levantar dados sobre como esses problemas afetam a educação superior e a produção acadêmica”; “desenvolver ferramentas teóricas e práticas para a comunidade acadêmica despolarizar o campus universitário”. Quanto ao primeiro tópico, é óbvio que o fanatismo é um inimigo da qualidade da pesquisa. Creio que uma professora que arranque cartazes e persiga alunos não faça isso por estar preocupada com a qualidade acadêmica da instituição. E creio que o termo “polarização” não cabe, já que só há fanatismo organizado de um lado. Quanto ao segundo tópico, os problemas relatados por Giannattasio no livro serão reconhecidos por qualquer egresso da academia em sua própria universidade. Não precisamos levantar dados para saber como é o problema – e o próprio levantamento pormenorizado é impossível sem a colaboração das instituições, ou com o clima de terror sobre os alunos. Quanto ao terceiro tópico, considero-o vago demais para discuti-lo.
Pedro Franco diz que “se tivermos qualquer esperança de um debate produtivo dessa questão no Brasil, aqui também precisaremos cobrar e apoiar o engajamento de nossa comunidade científica”. No mesmo livro, aprendemos que a UEL acha bonito cuspir na cara da senhorinha que foi à universidade participar de um projeto de extensão. Então é bom Pedro Franco perder as esperanças. De minha parte, eu não perco, porque acho que podemos ter fora da universidade debates produtivos. Qualquer solução para a universidade pública de agora terá que vir de fora. É preciso mudar a política de contratação de docentes, descartelizar a Capes e o CNPq, acabar com eleição para reitor e deixar a polícia entrar no campus normalmente.
A própria conduta de Giannattasio mostrou que recorrer à comunidade interna não leva a lugar algum. É um erro pensar que a universidade se move por teoria e pensamento. A universidade é parte da sociedade; e, se tiver sido privatizada por um bando de fanáticos, não é um movimento interno que irá dar um jeito nela.