Toda a melhor doutrina jurídica, em larga medida pacificada neste aspecto, interpretando a Constituição, sempre afirmou que a manifestação de opinião, em geral, não é crime. Repare-se bem: em geral. Restrições são possíveis – pois a liberdade de expressão obviamente não é absoluta –, mas elas são pontuais. E quando se trata da liberdade de opinião, contraposta à liberdade de narração de fatos, essas restrições são ainda mais estritas. O Direito Penal, neste sentido, é cirúrgico e não abre espaço para definições abertas que permitam arbitrariedades. Dois destes casos em que a liberdade de expressão, no campo da opinião, não é absoluta são os de incitação e apologia ao crime, previstos nos artigos 286 (“Incitar, publicamente, a prática de crime”) e 287 do Código Penal (“Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”). Se em tese as vítimas da arbitrariedade do STF cometeram algum crime, seria o de incitação ou apologia. E que condutas criminosas teriam sido ou incitadas, ou exaltadas, a ponto de configurar as hipóteses dos artigos 286 e 287 do Código Penal? Provavelmente, os crimes de golpe de Estado, previstos nos artigos 359-L e 359-M, acrescentados ao Código Penal pela Lei 14.197/21, dos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Mas teriam os empresários efetivamente cometido apologia ou incitação à ruptura institucional?

A resposta é indubitavelmente negativa: nem apologia, nem incitação. E não se trata aqui, nem de longe, de uma interpretação benigna da atitude dos investigados, mas da leitura que qualquer jurista (e, ousamos dizer, qualquer pessoa minimamente hábil em interpretação) faria em circunstâncias normais, não fossem os ares de vale-tudo contra determinadas tendências políticas que se respiram hoje em dia. É evidente que em nenhuma das manifestações no WhatsApp houve dolo de incitação ou de apologia. O que há é a intenção de manifestar pura e simplesmente a própria opinião, pouco importa se razoável ou não, moralmente defensável ou não. Onde haveria incitação? É evidente que ela não está presente, por duas razões bem simples: primeiro, pelo próprio teor da mensagem, que expressa mais uma preferência que um incentivo; segundo, porque, ainda que houvesse um encorajamento à ruptura institucional – o que não indiscutivelmente não existiu –, a conversa não envolve pessoas com capacidade concreta de cometer um golpe de Estado, sendo uma troca de ideias entre empresários. Não há, ali, ninguém sendo estimulado a promover uma quartelada – e um elemento essencial para que haja instigação é que exista um instigado. O mesmo se diga em relação à apologia. O ânimo é evidentemente o de expressar uma preferência, entre pessoas privadas, em um grupo , não o de, por meio de um enaltecimento da autocracia, ter em mente a intenção de provocá-la. Em resumo, não há dolo criminoso em nenhuma das manifestações, mas apenas a exposição de ideias em um ambiente privado. Qualquer pessoa com um entendimento mínimo de Direito Penal é capaz de perceber a ausência de crime, e qualquer magistrado teria rechaçado imediatamente, liminarmente, a possibilidade de investigar o grupo de empresários.

Quem toma ou aplaude medidas como a desta terça-feira alegando estar defendendo o Estado Democrático de Direito está, no fundo, contribuindo para a erosão do próprio Estado Democrático de Direito

Ou, ao menos, qualquer magistrado sem pretensões de estar acima da lei e que estivesse ciente da importância da liberdade de expressão, o que não é o caso de Alexandre de Moraes. “A liberdade de expressão não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito, inclusive durante o período de propaganda eleitoral”, afirmou dias atrás, ao tomar posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, em um dos trechos mais problemáticos de seu discurso. Ao contrário do que ele pensa, a democracia tolera, sim, muitos discursos que lhe sejam contrários, inclusive aqueles feitos de forma pública. Por mais que o ministro considere puníveis quaisquer “ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito”, o legislador brasileiro expressou de maneira inequívoca as poucas hipóteses em que a defesa de ideias contrárias à democracia pode ser proibida. Não se trata de uma omissão, mas de uma posição muito equilibrada, que reflete o entendimento de décadas de discussão sobre o tema. Não se proíbe, por exemplo, que alguém diga preferir uma ditadura; nem o debate sobre que forma de governo seria melhor, o democrático ou o autocrático; nem que alguém exponha o que considere serem pontos positivos de uma ditadura, real ou hipotética. Da mesma forma, qualquer um tem o direito de defender mudanças constitucionais, mesmo que absurdas. O combate a esses discursos se faz na arena das ideias, não pela persecução penal. Proíbe-se apenas a expressão que caracterize de fato incitação ou apologia de crime. Pretender o contrário é defender a instituição de um Estado policialesco, que fiscaliza todo tipo de manifestação, pública ou privada.

Se manifestar preferências políticas, ainda que deploráveis, em um ambiente privado se tornou motivo para ser enquadrado em inquéritos do STF e ser forçado a entregar celulares à Polícia Federal, é cada vez mais difícil afirmar que se vive em uma democracia plena no Brasil. Quem toma ou aplaude medidas como a desta terça-feira alegando estar defendendo o Estado Democrático de Direito está, no fundo, contribuindo para a erosão do próprio Estado Democrático de Direito, pois deseja instaurar um regime de vigilância e perseguição que não respeita limite algum.