Para isso, evidentemente, é preciso empurrar para baixo do tapete um dado científico inegável: que, a partir do momento do encontro dos gametas masculino e feminino, estamos diante de um indivíduo da espécie humana (de que outra espécie poderia ser?); dono de um genoma único, diferente dos genomas paterno e materno – ou seja, não uma “parte do corpo da mãe”; e indubitavelmente vivo (do contrário, não se desenvolveria); ou seja, vida humana, desde seu primeiro momento, como atesta qualquer manual de Embriologia usado nas faculdades de Medicina mundo afora. O que o abortismo faz é negar ou ao menos diminuir esse status. Um dos meios para isso consiste em estabelecer momentos do desenvolvimento embrionário ou fetal (como, por exemplo, a formação do sistema nervoso) para só então reconhecer vida humana, e ignorar deliberadamente as questões incômodas postas pela adoção desse tipo de limiar arbitrário, já que é impossível afirmar com plena honestidade intelectual que um embrião ou feto não seria humano antes desse estágio do seu desenvolvimento. Trata-se de um autêntico negacionismo científico.

E, se a tentativa de estabelecer parâmetros “científicos” falhar, entram em cena outras falácias desumanizadoras, como estabelecer uma distinção filosófica entre “vida humana” e “pessoa humana”, itindo-se que o embrião ou o feto são de fato vida humana, mas que por algum motivo – sempre arbitrário – não seriam pessoas, e por isso deveriam ser menos dignos de proteção, ou até mesmo nada dignos de proteção. Para isso, no entanto, é preciso esconder um fato que a boa antropologia filosófica atesta: que o nascituro nunca é um algo, mas um alguém, um ser humano desde seu primeiro momento. É por isso que bioeticistas comprometidos com a cultura da morte recorrem, em uma tentativa final de desumanização do embrião ou do feto, a conceitos como o de “senso da própria existência”, para usar as palavras do australiano Peter Singer ao defender uma ideia ainda mais macabra: a de que “matar um recém-nascido nunca é equivalente a matar uma pessoa”.

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Com o embrião ou feto devidamente privado do reconhecimento de sua humanidade e sua dignidade intrínseca, as portas estão abertas para o vale-tudo. Assim, o aborto pode deixar de ser reconhecido como um mal que é preciso tolerar, seja lá por que razões, para se tornar coisa mais corriqueira: uma afirmação jubilosa – e as celebrações na França, como também já havia ocorrido na Irlanda ou na Argentina quando da legalização naqueles países, bem o demonstram – da autonomia da mulher, que a a ser o único critério válido. É como se exprime, por exemplo, o atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que em 2018 respondia à ativista pró-vida (e hoje deputada federal) Chris Tonietto nos seguintes termos: “itindo que haja vida – e, portanto, trabalhando sobre a sua premissa –, se você se mover, como eu me movo, por uma ética kantiana, e se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual, e eu não quero sacrificar minha liberdade individual, você perde” – no caso, perde a vida, que fique bem claro.

Dias atrás, tratamos como “barbárie” a postura de optar pela eliminação deliberada de um bebê que já chegou a um estágio de desenvolvimento que lhe permitiria alguma chance de sobrevivência fora do útero. Mas é igualmente bárbaro retirar de um ser humano, independentemente de sua idade gestacional, sua dignidade intrínseca e cristalizar na lei maior de um país a possibilidade de seu extermínio como um direito. Não há verniz de civilização ou prosperidade material que sejam capazes de esconder o apodrecimento moral de uma sociedade que trata dessa forma os mais indefesos e inocentes entre os seres humanos.