Em 2015, o Congresso aprovou a primeira alteração constitucional que estabeleceu o chamado “orçamento impositivo”. A partir dali, o governo ficava obrigado a executar todas as emendas individuais, seja de sua base aliada, seja de oposicionistas. Em 2019, a mesma obrigação foi ampliada para as emendas de bancada. Terminava ali, portanto, a possibilidade de negociatas políticas usando as emendas como “argumento”. Os congressistas, no entanto, não tardaram a encontrar um outro meio de abocanhar uma fatia maior do orçamento, privilegiar certos grupos de parlamentares e restabelecer a barganha.
Em 2019, durante as discussões do Orçamento de 2020, foram criadas as “emendas de relator”, oficialmente de responsabilidade do parlamentar encarregado de relatar a peça orçamentária anual. A voracidade ficou escancarada desde o surgimento desse instrumento, quando o deputado Domingos Neto (PSD-CE) colocou nesta rubrica inacreditáveis R$ 30 bilhões – o dobro da soma das emendas individuais e de bancada – e ainda pretendia que as emendas de relator também tivessem caráter impositivo. No fim da queda de braço com o presidente Jair Bolsonaro, as emendas de relator foram reduzidas a R$ 20 bilhões, sem execução obrigatória. No Orçamento de 2021, foi a vez de o senador Márcio Bittar (MDB-AC) incluir R$ 26,5 bilhões em emendas de relator, contra R$ 17 bilhões em emendas individuais e de bancada; também desta vez o valor final foi reduzido, em uma disputa que ainda levou em conta o fato de a peça orçamentária simplesmente não fechar as contas, com a redução de recursos para gastos obrigatórios.
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O “pulo do gato” das emendas de relator está no fato de que, obviamente, a “paternidade” das emendas é apenas nominal, pois não é o relator quem decide sozinho para onde vai tanto dinheiro: ele acaba aplicado de acordo com as indicações de parlamentares amigos, e alocado em ministérios e órgãos de governo controlados por apadrinhados desses políticos. E todo o processo ocorre sem formalidades – no máximo, por meio de ofícios encaminhados aos órgãos e ministérios beneficiados com as emendas de relator, mas há informações sobre pedidos registrados em planilhas simples elaboradas por assessores e até feitos pelo WhatsApp.
O levantamento do destino das emendas de relator deixa clara a forma como ela beneficia especialmente o Centrão e outros aliados do governo. Entre os principais órgãos contemplados está, com R$ 1,2 bilhão, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), comandada por um indicado do deputado Elmar Nascimento (DEM-BA) e que tem superintendentes regionais apontados por políticos como o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Já o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do MEC, recebeu R$ 1,5 bilhão e tem à frente um indicado do senador Ciro Nogueira (PP-PI). O ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP) e a deputada licenciada Flavia Arruda (PL-DF), hoje ministra-chefe da Secretaria de Governo, também estão entre os que tiveram pedidos atendidos nas emendas de relator.
Já está suficientemente demonstrado que o instrumento das emendas de relator é uma aberração com inúmeros efeitos negativos, sem pontos positivos que os compensem
Os vícios contidos em todo o procedimento das emendas de relator são evidentes. Na “menos pior” das hipóteses, ela já viola a isonomia garantida pelas regras das emendas individuais, que contemplam igualmente todos os parlamentares. Com as emendas de relator, cria-se uma casta de privilegiados que têm direito a fazer indicações em valores muito maiores que as previstas nas emendas individuais. Isso leva ao problema conexo, que é a ressurreição da barganha política envolvida na execução dessas emendas. E, na pior das hipóteses, ainda fica reaberta a porta para a corrupção – o TCU investiga, ainda, o uso das emendas de relator para a compra de tratores e equipamentos agrícolas superfaturados.
Ouvido pela Gazeta do Povo, Marcos Mendes, pesquisador do Insper e consultor legislativo do Senado licenciado, afirma que as emendas, por si mesmas e de que tipo forem, já são uma distorção das funções dos poderes, já que “o orçamento deveria ser proposto e executado pelo Poder Executivo”. Que parte das emendas tenha se tornado impositiva apenas reforça a incapacidade de Executivo e Legislativo se entenderem quanto aos investimentos e gastos que precisam ser feitos. Uma anomalia que é potencializada pelo fato de a maior parte do bolo dos impostos ser remetida a Brasília, em vez de permanecer nos estados e municípios. Independentemente do desfecho das investigações do TCU, já está suficientemente demonstrado que o instrumento das emendas de relator é uma aberração com inúmeros efeitos negativos, sem pontos positivos que os compensem, mas parece improvável que a parte do sistema político movida a dinheiro e troca de favores esteja disposta a abrir mão dele.