Os terroristas podem ser igualmente rebeldes sem qualquer causa ou podem se dedicar a uma causa tão vaga e metafisicamente expressa que ninguém (a não ser eles mesmos) é capaz de acreditar no sucesso dela. Os niilistas russos, tal qual Dostoievski e Turgenev os descrevem, eram assim. Também eram assim a Brigada Vermelha italiana e a Baader-Meinhof alemã da minha juventude. Como demonstra magistralmente o historiador Michael Burleigh em Blood and Rage [Sangue e fúria], o terrorismo contemporâneo se interessa muito mais pela violência do que por qualquer coisa que ele possa alcançar por meio dela. Isso está claro no professor de Joseph Conrad em O Agente Secreto, que faz um brinde à “destruição de tudo o que existe”.

O caráter vago ou utópico da causa é, portanto, uma parte importante do apelo do terrorismo, já que isso quer dizer que a causa não o define nem tampouco limita a ação. A causa está à espera de um sentido dado pelo terrorista, que não quer mudar o mundo, e sim a si mesmo. Para matar alguém que nunca o ofendeu nem fez algo que mereça castigo você tem de acreditar que está usando uma espécie qualquer de manto angelical de justificação. Daí você começa a ver as mortes como uma demonstração de que você é mesmo um anjo. Sua existência obtém sua prova ontológica definitiva.

Os terroristas buscam a exultação moral, uma noção da existência que vai além do veredito humano, emanado por uma suposta permissão dada por Deus. Esse tipo de terrorismo, em outras palavras, é uma busca pelo sentido da vida — o mesmo sentido que a cidadania, concebida em termos abstratos, é incapaz de dar. Até mesmo em sua forma mais secular, o terrorismo envolve uma espécie de ambição religiosa.

É muito difícil matar a inocente Maria da Silva e seus filhos que estão fazendo compras. Daí porque essa estratégia de construção de identidade não pode simplesmente começar com o desejo por matar. A Maria da Silva tem de ser transformada em outra coisa — num símbolo de uma condição abstrata, numa espécie de encarnação de um inimigo universal. Os terroristas contemporâneos, portanto, tendem a usar doutrinas que tiram o caráter humano das pessoas que têm por alvo.

As teorias marxistas servem bem a esse propósito, já que elas criaram a ideia de uma burguesia, de uma “classe inimiga” que, na ideologia bolchevique, exerceu a mesma função que os judeus tiveram para os nazistas. A Maria da Silva e seus filhos estão por trás do alvo, que é a família burguesa abstrata. O fato é que, quando a bomba atinge esse alvo fictício, os fragmentos o atravessam facilmente e atingem o corpo real da dona Maria da Silva. Infelizmente para os Silva, você muitas vezes encontrará terroristas fazendo uma defesa abstrata do ato, dizendo que eles não tinham culpa pela morte da dona Maria e que as pessoas não deveriam se esconder atrás de alvos daquela forma.

A violência como forma de transcendência

O terrorismo islâmico é estimulado, de certa forma, pela mesma e conturbada busca por sentido e a mesma necessidade de se pôr acima de suas vítimas numa postura de expiação transcendental. Ideias de liberdade, igualdade e direito histórico não têm influência no raciocínio deles e eles não estão interessados no poder e nos privilégios de seus alvos. As coisas deste mundo não têm valor para eles e, se eles às vezes buscam o poder, é só porque o poder permite que eles estabeleçam um reino de Deus — objetivo que eles, como todos nós, sabem ser impossível e, portanto, interminavelmente renovável diante do fracasso. O desleixo deles quanto à vida alheia é comparável ao desleixo deles quanto à própria vida. A vida não tem valor específico para eles; a morte os assombra constantemente no horizonte. E, na morte, encontramos o único sentido que importa: a transcendência final deste mundo e da responsabilidade para com os outros que este mundo exige de nós.

Pessoas inoculadas pela cultura do repúdio, relutantes em reconhecerem a busca por sentido como algo universalmente humano, tendem a pensar que todos os conflitos são políticos e tratam de quem tem poder sobre quem. Elas estão dispostas a acreditar que a causa do terrorismo islâmico está na “injustiça social” contra a qual os terroristas protestam e que o fracasso de todas as tentativas de solucionar o problema torna os métodos deles necessários. Para mim, isso parece ignorar completamente a motivação do terrorismo em geral e sobretudo do islamismo.

O terrorista islâmico, assim como o niilista europeu, está interessado sobretudo em si mesmo e em sua condição espiritual, e ele não deseja realmente mudar as coisas num mundo ao qual ele não pertence. Ele quer pertencer a Deus, não ao mundo, e isso significa dar seu testemunho da lei e do reino de Deus destruindo tudo o que se põe em seu caminho, incluindo seu próprio corpo. A morte é seu ato máximo de submissão: por meio da morte, ele se dissolve numa irmandade nova e imortal. O terror da sua morte exalta o mundo da irmandade e ao mesmo tempo desfere um golpe devastador contra o mundo rival dos estranhos, no qual a cidadania, não a irmandade, é o princípio de união.

Por isso deveríamos reconhecer que enfrentamos um novo tipo de ameaça, um tipo que não tem objetivos limitados nem negociáveis, que não podemos enfrentar por meio do confronto militar e que os meios normais são incapazes de deter. Não há nada que possamos oferecer aos muçulmanos e que permita a eles dizerem que alcançaram o objetivo. Se eles conseguissem destruir uma cidade do Ocidente com uma bomba nuclear ou todo um povo com um vírus mortal, eles considerariam isso um triunfo, por mais que isso não gerasse nenhum benefício material, político ou religioso.

A perda da ironia

Claro que a maioria de muçulmanos comuns ficaria chocada com um acontecimento desses e consideraria o assassinato em massa do tipo perpetrado pela Al-Qaeda como um absurdo absolutamente proibido pela lei de Deus. E há indícios interessantes de que intelectuais muçulmanos estão tentando encontrar uma forma de se comprometer publicamente com a coexistência das outras duas religiões abraâmicas e garantir o amor entre vizinhos, por mais que o vizinho tenha outra fé. Veja a carta de 2007 para os líderes religiosos do Ocidente, assinada por 150 notáveis muçulmanos, pedindo o diálogo entre as fiéis e citando o respeito mútuo como a base da coexistência. Mas devemos notar dois fatos importantes.

O primeiro é que o Islã nunca conseguiu estabelecer uma fonte decisiva de autoridade religiosa. Todos os líderes espirituais são autoproclamados, como o Aiatolá Khomeini, e não têm credibilidade fora de seu círculo de seguidores. As pessoas geralmente dizem que é uma pena que o Islã não tenha ado por uma Reforma Protestante. Na verdade, essa é uma interminável série de reformas protestantes, cada qual se dizendo a única verdade em se tratando da obediência do homem a Deus.

O segundo fato importante — em conexão, acredito, com o primeiro — é que os muçulmanos demonstram uma incrível capacidade de dar as costas para as atrocidades cometidas em nome da sua fé e de protestar contra qualquer um que condene essas atrocidades. Os famosos desenhos dinamarqueses causaram revolta, unindo muçulmanos de todo o mundo em atos de destruição e ameaças de vingança. Alguns dias mais tarde, a mesquita al-Askari, em Samarra, um dos locais mais sagrados para os xiitas, foi explodida por terroristas. Mas onde estavam os manifestantes fora do Iraque? Mais muçulmanos do que não-muçulmanos foram mortos pelos terroristas islâmicos. Mas quando é que aqueles que dizem falar pelos muçulmanos mencionam essa estatística? Vale dizer que os infames desenhos queriam que víssemos as atrocidades cometidas em nome do Profeta. Ele aprova ou não isso?

Os muçulmanos precisam encarar essa questão. Mas uma moral dupla com raízes profundas os impede de direcionar contra seus companheiros muçulmanos a mesma raiva virtuosa que direcionam contra os inimigos da sua fé. Essa moral dupla é resultado direto da perda da ironia. Ela tem origem na incapacidade de aceitar o caráter alheio de tudo, de se colocar fora das próprias opiniões e até da própria fé, de ver isso como a fé de outra pessoa. Não que o islamismo sempre tenha abdicado da ironia neste sentido: as obras dos mestres sufi são cheias dessa ironia. Mas os mestres sufi (estou pensando especificamente em Rumi e Hafiz) pertencem àquela incrível e reconhecível cultura islâmica à qual os terroristas deram as costas, preferindo o ódio rasteiro de Ibn Abd-al-Wahhab ou a enganadora nostalgia da Irmandade Muçulmana e Sayyid Qutb.

Confronto existencial

O confronto com o qual nos deparamos não é político nem econômico; tampouco é o primeiro o rumo a uma negociação ou a um pedido de desculpas. Trata-se de um confronto existencial. A pergunta é: “Que direito temos de existir?” Ao respondermos “Nenhum”, abrimos brecha para a resposta “Foi o que eu pensava”. Uma resposta só pode conter uma ameaça se encará-la de cima para baixo; e isso significa estar completamente convencido de que temos, sim, o direito a existir e que estamos preparados para conferir o mesmo direito aos nossos oponentes, mas só se a concessão for mútua. Nenhuma outra estratégia tem a mais remota chance de ser bem-sucedida.

A Al-Qaeda pode estar enfraquecida; a conspiração para destruir o Ocidente pode ser apenas ficção criada pelos neoconservadores, que por sua vez podem ser apenas ficção criada pelos progressistas. Mas a ameaça não vem de uma conspiração ou de uma organização. Ela vem de indivíduos ando por uma experiência traumática que não conseguimos compreender totalmente — a experiência do muçulmano expatriado em confronto com o mundo contemporâneo e sem o benefício das duas dádivas do perdão e ironia. Essa pessoa é um subproduto imprevisível de circunstâncias incompreensíveis e inesperadas, e todo o nosso esforço para compreender sua motivação até aqui foi incapaz de sugerir uma medida que detivesse os ataques.

Qual, portanto, deve ser nossa posição nesse confronto existencial? Acho que deveríamos dar ênfase às grandes virtudes e realizações que construímos em nosso legado de tolerância e demonstrar certa disposição em criticar e curar todos os males aos quais nossa tolerância deu um espaço indevido. Deveríamos recuperar a diferença lockeana entre a liberdade e a licenciosidade e deixar claro para nossos filhos que a liberdade é uma forma de ordem, não uma licença para a anarquia e a autoindulgência. Deveríamos deixar de rir das coisas que eram importantes para nossos pais e avós, e deveríamos ter orgulho do que eles fizeram. Isso não é arrogância, e sim um reconhecimento de nossos privilégios.

Deveríamos, ainda, abandonar a embromação multicultural que tanto tem confundido a vida pública no Ocidente e reafirmar a ideia essencial da filiação social na tradição ocidental, isto é, a ideia de cidadania. Ao disseminar a mensagem de que acreditamos no que temos, estamos preparados para compartilhar isso, mas não para vê-lo destruído, fazemos a única coisa que podemos fazer para neutralizar o conflito atual. Como o perdão está na essência da nossa cultura, essa mensagem deve ser o bastante, mesmo que estejamos dizendo isso sob a influência da ironia.

Roger Scruton é escritor e filósofo. Este ensaio foi adaptado de uma palestra na Universidade de Calgary.

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© 2019 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês

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